Como surgiu o futebol feminino no Brasil?

O gol de pênalti sobre a Itália, na última partida da terceira fase do Mundial da França, deu a Marta o status de maior artilheira da história das Copas do Mundo. Até então, o recorde era do alemão Miroslav Klose, com 16 gols marcados no torneio.

Brasil vence a Itália por 1 a 0 na Copa do Mundo da França (Foto: CBF)

 

Seis vezes eleita a melhor jogadora do mundo, nossa camisa 10 ajudou a colocar o futebol feminino na vitrine, a atrair torcedores, a impulsionar a modalidade no país –ainda que muita coisa precise ser feita para melhorar a realidade delas nos gramados brasileiros.

E se hoje Marta, Cristiane, Formiga, Bárbara e companhia chegaram até aqui é porque, antes, outras mulheres desbravaram caminhos cheios de adversidades e preconceitos (dentro e fora do campo) para terem o direito e as condições mínimas de praticar esse esporte no Brasil.

POUCOS REGISTROS

As informações oficiais sobre o início do futebol feminino no Brasil são escassas e desencontradas. Inclusive porque, durante quatro décadas, as brasileiras foram proibidas de praticar o esporte –considerado “incompatível” e “inadequado” à natureza feminina.

Na tentativa de resgatar memórias desse período e reescrever capítulos perdidos, o Google, maior site de buscas do mundo, criou o “Museu do Impedimento”. Por meio da plataforma, as pessoas podem enviar textos, áudios, vídeos ou imagens que tragam histórias de quando as mulheres não podiam jogar bola.

Para reconstruir a linha do tempo da modalidade no país, alguns autores recorreram a publicações antigas, que relatam jogos femininos de exibição a partir do começo do século 20. Em 1921, por exemplo, há registros no jornal “A Gazeta” de um evento entre as “senhoritas” dos bairros da Cantareira e do Tremembé, em São Paulo.

Segundo a pesquisadora Heloisa Bruhns, nessa época, a prática do futebol restringia-se a mulheres de classes menos favorecidas, alvos de adjetivos como “grosseiras, malcheirosas e sem classe”. As senhoras da elite limitavam-se ao papel de torcedoras.

IMPEDIMENTO

Não demorou para que setores conservadores da sociedade começassem a se incomodar com o fato de as mulheres jogarem futebol. Médicos e professores de

Educação Física defendiam que o esporte era incompatível com a natureza feminina, que elas eram mais frágeis e que precisavam se preservar para a maternidade.

Então, em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, o decreto-lei número 3.199 de 14 de abril passou a proibir as mulheres de praticarem futebol e outras modalidades “inadequadas” para o corpo feminino como halterofilismo, beisebol ou qualquer tipo de luta. Natação, basquete, atletismo e tênis eram as práticas indicadas às futuras e delicadas mães.

Mesmo impedidas, muitas delas continuaram nos gramados, mas de forma clandestina, sem poder registrar suas conquistas ou se inscrever nas federações –o que explica a falta de fontes oficiais da época; o buraco na história do futebol feminino no Brasil.

A proibição durou até 1979 e deixou marcas profundas na modalidade. Além de provocar um grande atraso em termos de desenvolvimento de competições, calendários, categorias de base etc, contribuiu para afastar gerações de mulheres dos campos de futebol. Afinal, isso era coisa para homem. Enquanto os brasileiros já eram tricampeões do mundo, elas ainda lutavam pelo simples direito de jogar bola.

A regulamentação veio apenas em 1983, quando, enfim, as mulheres puderam competir, usar os estádios e aprender o esporte mais popular do país dentro das escolas.

AS MENINAS DO ARAGUARI

Considerado o primeiro time de futebol feminino do Brasil, o Araguari selecionou, em 1958, 22 meninas para uma partida beneficente que tinha como objetivo evitar a falência de uma escola da cidade do Triângulo Mineiro. O evento foi um sucesso.

Então, a equipe formada por Heloísa Marques, Zalfa Nader, Darci de Deus Leandro, Haidêe Dália Dias, Ormezinda Rodrigues, entre outros nomes, passou a receber convites para jogar em diversos lugares –Uberlândia, Goiânia, Belo Horizonte, Salvador– e parou nas páginas de importantes publicações daquele tempo, como na revista “O Cruzeiro”.

As meninas do Araguari Atlético Clube (Foto: Acervo Araguari Atlético Clube)

 

O furor, porém, durou pouco. As meninas do Araguari começaram a ser alvo de preconceito por parte de freiras e de senhoras da cidade e de seus próprios familiares. Com a volta do decreto-lei 3.199 no ano seguinte, elas foram proibidas de praticar futebol e não puderam aceitar um convite do México para disputar um jogo internacional.

Mineira de Belo Horizonte, Lea Campos também merece ser lembrada. Em um período no qual os gramados eram dominados por homens, ela gravou seu nome na história como a primeira árbitra do futebol brasileiro. Mas Léa nem sequer pôde participar da formatura do curso de árbitros de 1967, devido a retaliações machistas. Em 1971, a juíza foi convidada pela Fifa para apitar um torneio amistoso de futebol feminino realizado no México.

Lea Campos conseguiu o direito de apitar um jogo de futebol em 1971 (Foto: Divulgação )

 

A PRIMEIRA SELEÇÃO

Apenas em 1986 o Brasil passou a ter uma equipe feminina de futebol, que fez sua estreia contra os Estados Unidos no dia 22 de julho, para disputar um Mundialito sem grande peso competitivo.

Dois anos depois, em 1988, a Fifa organizou um torneio mundial de caráter experimental na China. A base do time brasileiro era formada por jogadoras do Esporte Clube Radar (RJ), que tiveram de vestir as “sobras” dos uniformes da seleção masculina. Em 1991, aconteceu a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino.

As principais referências dessa época são nomes como Meg, Maravilha, Sissi, Pretinha, Michael Jackson, Roseli, Márcia Taffarel e Kátia Cilene.

A seleção brasileira participou de todas as oito edições oficiais da competição. A melhor colocação da equipe canarinho foi o vice-campeonato em 2007 e o terceiro lugar em 1999. Nas Olimpíadas, conquistou duas medalhas de prata: em Atenas-2004 e Pequim-2008.

O CRESCIMENTO QUE NÃO ACONTECEU

Depois do quarto lugar no torneio de futebol feminino da Olimpíada de Atlanta-1996, a esperança era de que, finalmente, a modalidade ganharia espaço e organização no Brasil. Mas isso não aconteceu.

A Federação Paulista de Futebol (FPF) realizou algumas tentativas de estruturar um campeonato estadual, porém, os jogos foram fracasso de público. Sem um calendário oficial estruturado, os principais clubes brasileiros logo perderam o interesse e recuaram nos investimentos.

Diante desse cenário, muitas atletas deixaram o país rumo aos Estados Unidos, China, Escandinávia etc, em busca de melhores condições nos gramados. Para se ter uma ideia, em 2003, dos 24 times que disputavam a Série A do Campeonato Brasileiro (fórmula de disputa diferente da atual) apenas Guarani, Internacional, Juventus e Santos mantinham equipes femininas.

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HOJE

Embora algumas leis recentes tenham contribuído para o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil, muita coisa ainda precisa ser feita no sentido da profissionalização da modalidade. A Conmebol (entidade que regulamenta o esporte na América do Sul) e a CBF criaram regras que obrigam os grandes clubes a investirem em equipes femininas.

Hoje, o Campeonato Brasileiro, organizado pela CBF, conta com 16 times na Série A e 36 na Série B. Porém, a grande maioria das atletas não tem carteira assinada e precisa exercer uma segunda profissão para se manter.

Por isso, tentar a sorte nos gramados internacionais ainda é a melhor opção para elas. Entre as 23 meninas da seleção convocadas à Copa do Mundo da França, apenas seis jogam no Brasil. As outras 17 estão espalhadas por clubes dos Estados Unidos, da Europa e até da Coreia do Sul.


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